Aos 96 anos, Ferreirinha não deixou de lado o ofício que aprendeu ainda criança
9:20 09/11/2018
[Via Campo Grande News]
Figura conhecida no bairro Coronel Antonino, José Ferreira Leal, o “Ferreirinha” carrega nos vincos do rosto e nos calos das mãos as marcas de 96 anos de uma vida cheia de tragédias e alegrias, mas sem dúvida plena de histórias para recordar. José pode ser encontrado com facilidade no barracão de madeira nos fundos do bar, onde exerce o ofício que aprendeu com o pai há tantos anos e que já até perdeu a conta: o de ferreiro, como o próprio sobrenome e apelido informam.
“Você tem certeza que quer ouvir a minha história? É tão longa que vai levar a tarde inteira e um pouco mais”, adverte com bom humor o baiano, assim que a conversa começa.
Hoje, a vida é mais tranquila e é rindo que ele relembra dos tempos mais difíceis e das aventuras que o trouxeram até Mato Grosso do Sul, em 1950, quando o Estado ainda era Mato Grosso. Foram 12 dias de viagem até chegar aqui, movido pelo tipo de paixão capaz de fazer os jovens a deixar tudo para trás e seguir pelo mundo por conta da mulher amada.
Apaixonado por uma prostituta, Ferreirinha manteve o relacionamento escondido do pai, que apesar de amoroso era um homem rígido que gostava das coisas “direitas”. Ele deixou a Bahia a pedido dela, que queria reencontrar a família que vivia aqui, com a benção do pai, que na época acreditava que a vontade de desbravar o mundo era apenas coisa da juventude.
“Pedi uma vez e ele disse não, esperei mais um mês e pedi de novo, outra vez ele disse não. Deixei passar mais um tempo, pedi a terceira vez. Foi aí que ele me disse: ‘Admiro a sua determinação, já te disse não antes e você não desistiu, então vai. Vai, mas trata todo mundo bem, não compra nada que não puder pagar e não arranja briga com ninguém. O maior medo dele eram as brigas na fronteira, na época Mato Grosso tinha fama de perigoso, lá na Bahia diziam que aqui matavam as pessoas só pra testar o revólver”, relembra.
Do trajeto, Ferreirinha se lembra bem. Para chegar aqui foram dias trocando o pau de arara pelo ônibus até chegar em São Paulo, na Estação da Luz, onde ficou hospedado na Pensão São Pedro, tradicional na época. Depois disso, a chegada em Campo Grande foi de trem e daqui para o destino: Rochedinho.
“A família dela tinha um bolicho, mercadinho daquele tempo e atrás do bolicho eles construíram vários quartinhos para hospedar os peões que iam e vinham das fazendas. Ficaram muito felizes com a nossa chegada, mas a felicidade durou bem pouco”, conta.
A aventura que até o momento havia sido bem sucedida, não teve o final esperado: Pouco tempo depois, a mesma moça se “enrabichou” por um dos fazendeiros que sempre passavam por ali, “homem de posses”, não demorou a ter a aprovação da família.
“Quem me contou não foi nem ela, foi um velho que ficava o dia todo no bolicho, ele ouviu uma conversa e me chamou num canto, lembro até hoje das palavras, disse que era um assunto sério, enrolou e acabou soltando um ‘sua mulher tem outro’. Como não éramos casados, resolvi deixar pra lá, se ela queria ir com o outro, que fosse”.
Sem dinheiro, conhecidos e nem mulher, Ferreirinha passou anos difíceis. “Eu era orgulhoso, sempre fui. Cheguei até a passar fome. Foram 5 anos sem mandar notícias para o meu pai. Eu tinha prometido para ele que ficaria bem, então não quis mandar uma carta que contasse coisas ruins, ia partir o coração dele saber do filho naquela situação”, explica.
Ferreirinha procurou trabalho na cidade, em fazendas e até no “Fala verdade”, segundo ele, um garimpo conhecido na época. Nas andanças, ele não achou emprego, mas se lembra do primeiro que lhe estendeu a mão, um baiano vindo Lençóis. Conterrâneos, o estranho ofereceu abrigo para Ferreirinha passar a noite, na conversa que foi até de madrugada o homem resolveu revelar um segredo bem guardado: Dentro de um osso do boi, ele guardava uma pequena fortuna em diamantes, acumulada ao longo de 4 anos, o sonho dele era juntar o suficiente para voltar para casa e comprar uma fazenda. Ferreirinha partiu da casa do garimpeiro no dia seguinte e não repetiu a história por vários anos, pela segurança do amigo que já teve o nome apagado da memória. Se ele conseguiu a tal fazenda? Ferreirinha se pergunta até hoje.
Vivendo como dava, comia as frutas que encontrava nas árvores da cidade, levou tempoaté encontrar uma maneira de ganhar dinheiro. Quase 1 ano depois dos infortúnios, ele conseguiu um bico carpindo terreno para um japonês que encontrou na época. Um trabalho que custou 3 dias de dores intensas pelo corpo, mas que rendeu 25 mil réis, o suficiente para que ele comprasse os primeiros instrumentos de trabalho para montar a ferraria e voltar a exercer o ofício aprendido desde a infância.
Foi ali, sem nunca perder a esperança de uma vida melhor que Ferreirinha conseguiu dinheiro para voltar para a Bahia, em 1955 e rever os pais, que depois de tanto tempo sem notícias, já davam o filho como morto. A emoção do reencontro foi grande, mas não fez com que ele ficasse por lá, parte da vida dele já estava enraizada em terras mato-grossenses e depois da visita o coração chamou de volta para a pernambucana Maria da Silva Rodrigues, um amor que não foi o primeiro, mas se mostrou ser aquele pra vida toda que tanta gente procura.
Maria nasceu no Piauí, mas foi criada no interior de Pernambuco nas terras da família que já naquele tempo lutava para sobreviver à seca, eram quase 2 anos sem chuva. Veio parar em Rochedinho quando o pai, já cansado, vendeu todo o rebanho e largou a fazenda lá para atravessar o país em busca de melhores condições.
Trabalhadora, Maria ajudava em casa desde cedo, trabalhando em plantações de café e até em casas de família, conheceu Ferreirinha quando a mãe, que era costureira precisou levar a máquina para consertar na oficina. “Bom moço”, ele conquistou logo o coração da sogra e teve incentivo para cortejar a filha. O casamento dos dois, segundo Ferreirinha foi em 1955 mesmo, pouco depois de voltar da casa dos pais.
O casal se mudou com os 9 filhos para Campo Grande em 1979, para o terreno em que o vivem até hoje, tudo para que as crianças pudesse seguir os estudos, que no interior ia apenas até correspondente ao ensino fundamental. O barracão de madeira onde Ferreirinha mantém a oficina é a parte mais antiga da casa, assim como o bar construído em 1980, que ele abre religiosamente todos os dias às 17h depois de fechar a ferraria.
Hoje, mesmo aposentado, Ferreirinha não deixou de lado as ferramentas com que lidou a vida toda. No começo ele fazia de tudo um pouco, desde carrocerias até pés de cabra, carroças, machados, portões, ferro para marcar gado, mas com a idade ele passou a escolher melhor os serviços e que pega, mais pelo hábito de não parar para “ver a vida” passar, enquanto o corpo ainda permite o movimento, que para ele é o que alimenta a vida.
Mal as portas do barracão se fecham, os clientes começam a chegar e são os de sempre, raramente aparecem rostos novos por ali, mas o importante mesmo são os clientes regulares, que passaram a ser amigos de longa data e não deixam passar um dia sem visitar Ferreirinha para tomar “aquela gelada”. Ali, a conversa vai até a hora de fechar o bar, às 20h, mesmo horário em que o supermercado no outro lado da rua, isso porque segundo o baiano, a “rua fica muito triste depois que o mercado fecha, enquanto a luz de lá está acesa, há movimento por aqui”, depois que fica tudo escuro cada um segue seu rumo, prontos para voltar no dia seguinte.
Conhecido há tanto tempo e querido por todos no bairro, Ferreirinha completou 96 anos no dia 16 de julho com direito a churrasco organizado no bar pelos amigos e vizinhos. Com o dinheiro arrecadado, ele finalmente pode depois de muito tempo voltar à Bahia, uma viagem longa e feita de ônibus, que apesar da distância não impediu o baiano de ver a terra natal, que pela disposição e saúde está longe de ser a última viagem.
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