Na reabilitação, professores, papel e caneta são aliados contra as drogas
12:35 14/11/2018
[Via Correio do Estado]
Entre todas as maneiras pelas quais a educação pode ser transformadora, é a oportunidade de recomeçar, depois de um longo histórico de dependência química, que une 47 internos do Esquadrão da Vida em Campo Grande. Hoje, eles fazem parte do primeiro projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA) em uma comunidade terapêutica, realizado em parceria com a Escola Municipal Consulesa Margarida Macksoud Trad.
Na jornada da reabilitação, as letras e os universos construídos por elas são parte da estrutura que mantém a conexão de quem está em tratamento com o mundo aqui fora.
As três salas de aula abertas no momento são do Ensino Fundamental, atendendo desde os processos iniciais de alfabetização e escrita, até as fases finais do curso que são a base para o ensino médio. A ideia é que após o período de internação, os alunos tenham condições de continuar os estudos, preparados para qualquer desafio que apareça.
Nessa situação, dizer apenas que a “educaçãoabre portas” seria limitar o trabalho realizado de segunda a sexta-feira, das 18h às 21h, pelos professores que saem todos os dias da escolamunicipal onde trabalham para ir até a comunidade levar conhecimento a estudantes que além da vontade de aprender, lutam contra os estigmas das escolhas feitas no passado.
Dependência química não tem rosto, nível de escolaridade ou classe social, ali dentro estão pessoas que também não se definem por nada disso.
Carlos César ainda se lembra do tempo que passou na rua em função das drogas e do álcool, além de todas as dificuldades na infância, trabalhando desde pequeno, ele viu a escola se distanciar cada vez mais da realidade, até ser esquecida.
“Eu interrompi meus estudos muito cedo, desde pequeno trabalhei, sempre morei em fazenda e nunca tive tempo de estudar, mais tarde conheci as drogas. Eu já tentei voltar depois de adulto uma vez e nunca concluí, porque eu trabalhava e estudava, tudo ao mesmo tempo e não conseguia acompanhar, agora aqui eu tenho esse tempo”, conta Carlos, que não se deixa abater pelos dias difíceis, hoje o foco dele é o futuro: “Eu quero ser engenheiro na verdade, eu sou pedreiro, faço de tudo e acabamento, então eu quero estudar e fazer uma faculdade”.
Com uma história parecida, Fabiana Maria não conta nos dedos os anos que passou na rua, com idas e vindas desde os 13 anos, o período mais recente durou 8 meses e foi decisivo para que ela buscasse ajuda. Há 2 meses trabalhando na recuperação, voltar a estudar ajudou a mente a encontrar novos objetivos. “Eu queria voltar aos estudos porque não tive oportunidade de estudar, minha mãe ficava mudando pra lá e pra cá, pra cá e pra lá e porque vim da rua também, então eu quis, não, eu quero mudar minha vida.” afirma. Para ela o primeiro passo é saber a ler e escrever, apenas o começo para quem reaprendeu a sonhar e daqui há alguns anos se vê médica pediatra, cuidando das crianças que adora.
“Eu parei de estudar quando estava aprendendo a ler, agora eu já até sei as palavras, ler, escrever, eu não sabia nada”, conta Camila cheia de orgulho, que está deixando para trás 19 anos de dependência química, por ela mesma e pela família que “sofria junto com ela”. A força para seguir o tratamento vem dos netos, que ela quer ver crescer, uma chance perdida na infância das filhas.
Com 4 meses de tratamento, ela já faz planos para quando tiver alta, “Quero ajudar outras pessoas do mesmo jeito que eu fui ajudada, através de mim trazer outras pessoas para cá. Conheço muitas pessoas lá fora que estão na mesma situação que eu estava”.
Wilson Antônio Soares é responsável pela comunidade e monitora de perto o progresso de cada interno, classificada pela organização mundial da saúde como uma “doença incurável, progressiva e fatal”, ele explica que a luta pela desintoxicação é um trabalho para a vida inteira, mas que nem por isso deixa de ter resultados.
Na comunidade, o tratamento é dividido em três fases: 1º é a adaptação e a desintoxicação, que dura cerca de 2 meses, a 2º etapa é a orientação, com desenvolvimento de atividades educativas e apoio psicológico. A ressocialização acontece na terceira etapa e consiste nos últimos 2 meses de tratamento na unidade, mas o acompanhamento é contínuo e oferece a possibilidade de um período de “estágio”, em que os acolhidos podem continuar ajudando “na obra”. É o caso de Carlos, que mesmo já tendo recebido alta, está trocando o piso do salão que serve de sala de aula e igreja, como uma maneira de retribuir a ajuda que recebeu.
Em 23 anos como professora, Márcia Cristina Dias, está presente desde agosto todos os dias na comunidade, com aulas de Língua Portuguesa, Inglês e Literatura, em um “pacote completo”. Ela reconhece que existem dificuldades no ensino, mas é ali que como educadora sente seu trabalho mais valorizado. “Eles têm um ritmo de trabalho diferente, em alguns dias eles estão um pouco mais sonolentos, agitados e ansiosos, mas é raro, normalmente é um caso ou outro. No decorrer das aulas são estudantes muito participantes, que estão em busca dessa oportunidade. Saio todos os dias daqui muito satisfeita”, conta.
A maior dificuldade é o tempo que os alunos ficaram fora de aula, mas Márcia afirma que diariamente eles buscam se superar e recuperar tudo o que perderam. A professora também vê mudanças que vão além de comportamental, para ela existe a progressão como pessoa, seres humanos tentando ser iguais a quem está lá fora, se tornando apenas “comum”, sem os estereótipos que eles carregaram até chegar aqui.
Junto com as letras, os alunos aprendem a voltar a sonhar e ter esperança em um futuro, não apenas melhor, mas construído do zero com a ajuda de pessoas capazes de enxergar a capacidade em cada um e estender a mão.
O projeto de extensão da Escola Municipal Consuela Margarida Macksoud Trad surgiu da parceria entre a Subcretaria de Defesa dos Direitos Humanos e Comitê intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua e a Secretária Municipal de Educação.
Comente esta notícia
compartilhar