Em 1970, Maria Athênice foi 1ª dona de posto de gasolina e ainda com 7 filhos
15:50 14/03/2019
[Via Campo Grande News]
Nascida em março, Maria Athênice Gonçalves de Alencar, completa 99 anos com um sorriso contagiante e a energia típica daqueles nascidos no mesmo mês. Independente, faz questão de morar sozinha, vai à academia e “se distrai” entre os pontos de bordado, crochê e costura. Quem vê o olhar de calmaria e bom humor conferido pela experiência de vida, não imagina a luta e o trabalho da mulher, que ainda no século passado foi a primeira a administrar um posto de gasolina em Campo Grande.
Sentada na poltrona de couro da sala de visitas, em seu vestido florido, sapatos de boneca, com os cabelos brancos muito bem alinhados e colar de pérolas, ela faz uma figura muito elegante. Mas um pouco de atenção aos brincos redondos de zircônio brilhante, revela em dona Maria Athênice um estilo clássico que não deixa de lado as tendências da moda que lhe agradam.
Contando a própria vida como se os acontecimentos fossem de ontem mesmo, por vezes ela se confunde com as datas, mas em momento nenhum com os fatos, que resgata da memória como quem vê um filme passar diante dos olhos. Maria Athênice teve dois irmãos, passou parte da infância em Ponta Porã, cidade onde nasceu e parte em Bela Vista.
A juventude foi em Aquidauana, um período que ela mesma descreve como “curto”, já que se casou e assumiu as responsabilidades de gerir uma família muito cedo. Na cidade, a família era dona da pensão Santo Afonso, onde ela se dividia entre ajudar a mãe com os afazeres de hotelaria e o colégio Nosso Senhora do Perpétuo Socorro.
“Quando eu terminei o curso primário, meus pais não tinham condições de me mandar para Campo Grande para eu estudar. Entenda, porque em Aquidauana não havia ginásio na época e eu tinha por volta dos meus 15, 16 anos. Então, fui para a escola aprender bordado a mão e datilografia, cheguei a fazer uma colcha toda trabalhada em rechilieur, que foi para exposição”, relembra.
Coincidência ou destino, de certa forma o responsável por apresentar Maria ao futuro marido foi o curso. “Enquanto eu estava aprendendo datilografia, a freira estava trabalhando em um bolso de camisa, bordando as iniciais BPA. Pouco tempo depois, dois cavaleiros pararam na pensão para o almoço e eu vejo em um deles o BPA, quando eu vi ele entrando eu chamei minha mãe de falei: Aquele bolso, a irmã Roberta estava bordando essa semana. Ele me olhou, viu que eu estava apontando para ele e pensou que eu estivesse falando outra coisa e já começou a ficar todo assanhado. Mamãe muito rígida, me mandava para o quarto passar os lençóis e fronhas do hotel”.
Basílio Pimentel Alencar (BPA), era 17 anos mais velho que Maria Athênice, vindo de Pio IX, interior do Piauí, trabalhava com venda e troca de touros de raça e passava pela pensão Santo Afonso entre uma viagem e outra. Sempre “cortejando” a mocinha bordadeira até receber autorização dos pais dela para o namoro, noivado e finalmente o casamento no dia 10 de novembro de 1937, na Igreja Nossa Senhora da Conceição. Os dois dividiram a vida até 1995, quando o curso natural da vida levou Basílio, há 3 meses do casal completar 60 anos de casamento.
Maria Athênice assumiu responsabilidades muito cedo e além da criação dos 7 filhos, Aurélio, Therezinha, Carlota, Honório, Alcindo, Matê (Maria Athênice) e Basílio Júnior, também compartilhou com o marido escolhas importantes para os negócios da família. Depois de Aquidauana, a família chegou a morar em Maracaju, onde a família continuou no ramo de hotelaria, dessa vez com a pensão Santa Therezinha, gerenciada por eles ao longo de 4 anos.
Pouco tempo depois, a família veio recomeçar a vida em Campo Grande, em uma casa nos altos da Avenida Afonso pena, “boa, mas muito distante da escola”. O que motivou a mudança para uma casa “provisória” de madeira na Rua dos Ferroviários, de acordo com ela, Basílio era um dos poucos, senão o único na rua inteira a não trabalhar na ferrovia Noroeste. Entre as lembranças, as enchentes do Córrego Segredo, que em dias de chuva intensa chegava até a varanda da casa e da lama que ficava depois.
Difícil foi encontrar a imagem do protetor do novo empreendimento. “O posto lá se chamava Posto Central, na esquina da Rua Maracaju com Avenida Calógeras. Eu mudei o nome para Santo Afonso, de quem minha família é devota. Procurei em Campo Grande uma imagem do santo e nada, na época tinha uma amiga em São Paulo, para quem eu contei a história e daqui um pouco chega uma caixa com a imagem dentro. Ele ficava na minha sala e era o protetor de tudo”.
Maria Athênice conta que na década de 1970, eram apenas 13 postos de gasolina na cidade, entre eles o Santo Afonso, que foi o primeiro a uniformizar os seus funcionários. Com zelo de quem cuidou de hotel a vida inteira, ela fazia questão de recolher os jalecos todas as noites e levar para casa, onde lavava e os devolvia brancos e brilhantes na manhã seguinte para frentistas.
Questionada sobre como era ser a única mulher em um mercado de homens, Maria Athênice não se intimida, assume que ficava constrangida, mas que nunca deixou de ir às reuniões de negócios.
“Meu marido me acompanhava e aplaudia quando era o Santo Afonso, mas que respondia pelo posto que estava em meu nome era eu”, conta. Por lá, era ela quem mandava e desmandava. Além da gerência, ia para onde fosse necessária, inclusive para a bomba abastecer os carros que por ali paravam. Sempre teve o apoio do marido, que nunca se meteu no posto, do qual ele sempre reconheceu ser ela a dona, com liberdade para fazer o que quisesse ao longo de quase 8 anos antes da venda.
Viúva há 24 anos, até hoje leva na mão esquerda as alianças de casamento e se lembra com saudade do marido que se foi. “Eu enfrentei a falta dele com muita dor, mas com muita luta e vontade de vencer. Eu precisava dar bons exemplos para os meus filhos. Foi uma luta pesada, mas eu nunca me entreguei. Lembro dele quase todos os dias nas coisas que ele fazia”. Conhecido pelos ditados que ele costumava usar para educar os filhos, como “romaria boa faz, quem na sua casa fica em paz”, bordão repetido sempre que as meninas já adolescentes, pediam para “saracotear” na rua. Muito certo com os negócios, Basílio é descrito pela esposa como um homem justo e zeloso, mas que também sabia se divertir nos bailes muito comuns pela região. “Era o primeiro a sair dançando com as filhas, um monte de rapazes em volta, tentando se aproximar das meninas e ele não dava chance”.
Hoje, além dos 7 filhos, são 9 netos e 25 bisnetos. Com 99 anos de bagagem, ela afirma que o segredo da longevidade está no amor, no perdão ao próximo e na fé em deus. Morando sozinha no apartamento escolhido e decorado pelas filhas, Maria Athênice vive cercada pelas lembranças do passado, com fotos das pessoas que ama emolduradas nas paredes e mesas de canto. Os móveis ainda são os mesmos feitos em madeira maciça e trazidos da casa na Rua dos Ferroviários, tudo pensando não apenas para o conforto dela, como também para que se sinta acolhida pela casa onde mora há quase 20 anos, sem sentir falta do antigo lar.
Em março de 2010, as memórias de Maria Athênice viraram livro na coleção “Eu sou história”, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, onde além de narrar a própria trajetória de vida, também resgata o estilo de vida de Campo Grande no século passado, descrevendo com detalhes o desenvolvimento que observou de perto, como se a cidade fosse uma criança querida que viu crescendo.
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