Campo Grande

Estátua de Manoel de Barros completa um ano sem pé

Circuito MS

11:28 19/04/2022

Monumento ao poeta Manoel de Barros completa um ano sem o pé esquerdo; governo do Estado diz que reparo está em andamento

Hoje faz um ano. No dia 19 de abril de 2021, o monumento ao poeta Manoel de Barros (1916-2014), em Campo Grande, amanheceu incompleto.

Localizada em um dos cruzamentos mais movimentados do centro da Capital, no encontro da Avenida Afonso Pena com a Rua Rui Barbosa, a figura do escritor, que se tornou mundialmente reconhecido por ter transformado as “ignorãças”, as memórias inventadas e até o nada em matéria de poesia permanece no local com o mesmo sorriso brejeiro no semblante.

Ainda estão lá, acomodados no sofá com o poeta, o caramujo e o sabiá de bronze, o mesmo material com que foi confeccionado todo o monumento, que leva a assinatura do escultor Ique Woitschach.

São dois seres recorrentes na fauna do universo que a lírica de Barros recria, engendrando mundos mágicos que parecem surgir de uma mente que opera sempre em 3D, ao mesmo tempo serelepe e ingênua.

PÉ ESQUERDO

O que foi levado da estátua do poeta durante a madrugada daquela triste segunda-feira, e que permanece ausente da estátua, é o pé esquerdo.

A leveza na expressão do homenageado, que repousa ali sentado com as pernas cruzadas, e todo o conjunto da paisagem, em que se misturam os animais imaginados com os de verdade e as figueiras centenárias da avenida, apenas aumentam o impacto do gesto de vandalismo que deixou a figura manca.

Mais conhecido como cartunista e ilustrador, Ique Woitschach chegou a declarar, na época, logo após o incidente, que havia alertado o poder público para o risco de lesão à obra inaugurada em dezembro de 2017, recomendando a instalação de câmeras de segurança e de uma iluminação melhor na área do patrimônio.

O circuito de câmeras de vídeo que então monitorava o trecho em questão da Afonso Pena não registrou nenhuma atitude suspeita na época.

Questionou-se, inclusive, o posicionamento ou a falta de câmeras da Guarda Municipal que permitissem uma vigilância mais eficiente.

ANTECEDENTES

Na madrugada de 12 de março de 2018, menos de três meses após a colocação do monumento, duas pessoas foram detidas quando tentavam roubar luminárias do local, graças ao flagrante da central de videomonitoramento.

A essa altura, parte da iluminação já havia sido levada, uma vez mais, sem nenhum registro de imagens. E o sofá de Barros já servia de cama para moradores de rua quando, em abril do mesmo ano, fotos postadas em redes sociais mostravam outro grupo de vândalos em posições obscenas junto à estátua.

Em junho de 2021, dois meses depois de o pé esquerdo do monumento ter sido arrancado e uma semana após Woitschach visitar o local para uma primeira vistoria, uma câmera do sistema de videomonitoramento municipal, que foi implantado em 2015 e é operado pela Guarda Civil Metropolitana, foi posicionada de modo a permitir o pleno visionamento da obra de arte pública.

A câmera muda o ângulo de observação a cada 30 segundos e até hoje não foi encontrada uma razão para os apagões no sistema que, volta e meia, tornaram invisível a ação de vândalos.

400 QUILOS

Fundida em cobre e pesando aproximadamente 400 quilos, a peça criada por Woitschach mede 1,38 m de altura e 1,60 m de largura.

O artista afirmou, após o delito, que a atrocidade poderia ter sido pior, pois, durante sua vistoria, em 8 de junho de 2021, especulou, a partir de sua observação, que a tentativa dos ladrões do pé de Barros tinha o objetivo de levar todo o monumento.

Gustavo Castelo, o Cegonha, que na época era presidente da Fundação de Cultura de Estado (FCMS), órgão responsável pela construção do monumento, adiantou, no período dessa vistoria, que um plano de intervenção para melhorar a segurança e o conforto no canteiro do poeta, seria anunciado. Mas até hoje a estátua segue sem reparo.

PARCERIA

Apesar de ser uma iniciativa do governo do Estado, como qualquer patrimônio instalado na cidade, o monumento demanda algumas atribuições também da Prefeitura de Campo Grande, como o ordenamento, a fiscalização, a limpeza e as ações de segurança.

O ideal é que toda a manutenção e a preservação da área sejam tocadas em parceria pelos dois entes do poder público, que devem ainda mobilizar a contribuição de toda a sociedade para um usufruto responsável.

TRADIÇÃO

Os estragos em monumentos públicos em decorrência do vandalismo são uma vergonhosa prática em diferentes regiões do País.

O busto do cineasta Glauber Rocha (1939-1981), inaugurado em uma movimentada avenida de Salvador em 2003, foi completamente arrancado do local em 2015.

Vinicius de Moraes (1913-1980) teve maior sorte com o seu monumento instalado na Praia de Itapuã, também na capital baiana – que mostra, em tamanho quase real, o “poetinha” sentado à mesa e empunhando um copo, em alusão ao seu hábito de bebericar a todo o tempo.

Levaram não somente o copo, mas também a caneta, um caderno de notas e os óculos de Moraes, tão reconhecido na poesia como letrista da canção popular.

Ainda em Salvador, a estátua de Pelé teve de ser transferida da parte externa para dentro da Arena Fonte Nova depois que levaram a taça Jules Rimet das mãos do rei.

Da figura de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), sentado em um banco na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, que foi instalada em 2002, usurparam – mais de dez vezes! – também os óculos. A última foi em outubro.

Em fevereiro de 2020, a capital carioca foi cenário de um crime do gênero que chamou atenção pelo porte da peça roubada. Com 400 quilos, o mesmo peso do monumento a Manoel de Barros em Campo Grande, e dois metros de altura, a estátua de Dona Rosa Paulina da Fonseca, mãe do Marechal, que em 1889, com a proclamação da República, tornou-se o primeiro presidente do Brasil, desapareceu de um grande monumento no bairro da Glória.

EM ANDAMENTO

De acordo com a assessoria de imprensa da FCMS, o projeto está em andamento e depende, entre outros fatores, da agenda de Woitschach para que as ações planejadas tenham prosseguimento.

Campo-grandense de nascimento, o escultor mora no Rio de Janeiro e preferiu não se manifestar nesta reportagem. Mas, demonstrando grande frustração, rechaçou de pronto que uma eventual indisponibilidade pessoal sua pudesse ser impeditivo.

Na semana passada, a Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos (Agesul) anunciou ter mantido contato com Martha Barros, filha do poeta, para a recuperação das 15 placas com versos do patriarca que foram colocadas no Parque dos Poderes em 2004 e desgastaram-se com o tempo.

VÍCIO

Com ou sem câmeras por perto, o vandalismo parece imperar, movido muitas vezes pela compulsão dos usuários de crack.

Segundo as autoridades e especialistas, como essas esculturas costumam ser produzidas em bronze, os adictos tentam arrancar o máximo que conseguem do metal nas peças para a venda no mercado ilegal.

Uma frase de Glauber Rocha, o mesmo que teve o busto subtraído em um monumento da capital baiana, parece sintetizar o drama por trás de todos esses furtos:

“A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”, diz o cineasta em um manifesto de 1965 que permanece atual, a “Estética da Fome”.

Via Correio do Estado MS

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