“Fogo cruzado” de bairros vizinhos não fez comerciante largar a Vila Jacy
9:20 24/08/2019
[Via Campo Grande News]
De domingo a domingo, seu Kenji Kurashige, de 73 anos, e a esposa, Elizabeth Volkotf acordam cedo para abrir as portas do Supermercado Econômico, às 7h, no Jardim Jacy ou Vila Jacy, em Campo Grande. Com sorriso no rosto, eles provam todos os dias que nem mesmo o “fogo cruzado” na região, com bairros de alto índice de violência como Marcos Roberto e Nha-nhá, fez os comerciantes e moradores desistirem do local.
“Quando chegamos era tudo chão, lembrava uma chácara e não tinha muitos moradores. Era tranquilo, mas quando asfaltaram as ruas começaram os assaltos e a criminalidade aumentou”, contou Elizabeth. Ela tem 57 anos e comentou sobre o motivo que fez o casal se mudar para a vila, em 1981. “Tínhamos outro mercado, mas era no centro da cidade. Viemos pra cá por conta da concorrência. Era muita gente competindo. Compramos o mercado e depois fizemos a casa em cima pra morar”.
Elizabeth Volkotf relatou a história do mercado na região (Foto: Kisie Ainoã)
O comércio está na rua José Paes de Farias, perto da praça da Jacy. A fachada foi pintada de azul, cor escolhida por Kenji para aparentar um espaço mais tranquilo. Instalaram as prateleiras, compraram três balcões, baleiros, calculadora que imprime para fazer as somatórias, etc. Tudo de mais moderno para o tempo, que hoje, eles fazem questão de manter.
“O atendimento é o mesmo há 38 anos. Procuramos vender bem e preservar o modelo de trabalho do início. Tanto que tem apenas dois meses que começamos a passar cartão, porque são clientes mais antigos. Tem que manter a freguesia”, disse Elizabeth.
O tempo na vila e o carinho pela clientela criou uma relação de confiança entre o casal e os moradores do local. Tanto que, se a pessoa não tiver dinheiro suficiente para comprar um produto, pode levar fiado. “Se faltar, a gente anota no ‘vale’, Eles pagam depois”, afirmou.
O vale é usado em situações de emergência, quando o cliente não tem dinheiro suficiente (Foto: Kisie Ainoã)
O mercado mantém a estrutura antiga de quando iniciou no bairro (Foto: Kisie Ainoã)
Kenjo sentado na cadeira do caixa e atendendo uma cliente (Foto: Kisie Ainoã)
Papel Sulfite com informações sobre os valores dos ovos (Foto: Kisie Ainoã)
Foto de quando ocorria o sorteio da lata de óleo no mercado do japonês (Foto: Kisie Ainoã)
Dessa forma, o mercado do japonês foi conquistando outros clientes, que se mudaram para a região. Para popularizar ainda mais o mercado, faziam sorteios para doar latas de óleo. “Quem comprava mercadorias preenchia um papel com os dados pessoais e colocava na caixa. Depois, fazíamos esse sorteio”, lembrou.
No comércio têm de tudo um pouco, desde a pipa para a criançada, alimentos e até lápis de carpinteiro. “O pessoal sempre vem aqui porque sabe que encontra”, falou Elizabeth. Após ter filhos, ela e o marido se mudaram para o Centro da Capital, porém, fizeram questão de continuar com o mercado na Jacy. “Nossos clientes se tornaram amigos. Tem gente que veio aqui quando era criança e hoje traz os filhos”.
Elizabeth mexendo no baleiro que comprou no começo do mercado no bairro (Foto: Kisie Ainoã)
Padaria – Outro comércio conhecido na região é a “Padaria e Confeitaria Jacy”, localizada na rua Otília Barcelos, também perto da praça. É ali que João Baptista, 71 anos, abriu uma das primeiras padarias do bairro, que até hoje funciona de segunda a segunda, das 5h15 às 20h. “Apenas no domingo que o horário é até ao meio-dia”, disse.
“Cheguei aqui em 1976 e tinham poucos estabelecimentos. Sou um cara teimoso, entrei na padaria e estou lutando até hoje. Já é tradição e o pessoal gosta dos pães”, falou. Ele era de São Paulo, conheceu Campo Grande enquanto viajava a trabalho com seu pai. “Meu pai é português, tinha uma fazenda onde comprava e vendia cereais”.
José Baptista contou que é o padeiro mais antigo da Jacy (Foto: Kisie Ainoã)
Soube que no Jacy havia uma indústria de laticínios, e enxergou nisso uma oportunidade de empreender. Depois que se instalou no bairro, colocou a mão na massa para conquistar a freguesia, que na época, era pouca. “Vendia pão bengala por R$ 0,50. Sou padeiro há 60 anos, asso os pães todos os dias. Os moradores frequentam muito meu estabelecimento e me tornei bem conhecido aqui. Sou o tipo relações públicas”, brincou.
O bairro foi se desenvolvendo e a concorrência até que tentou, mas não conseguiu desbancar os pães do Zé, como também é chamado pelos moradores. “Montaram mais padarias, mas quebraram em pouco tempo”. A Padaria e Confeitaria Jacy até virou ponto de referência.
Neyr Assad Ferreira ao lado do esposo José (Foto: Arquivo pessoal)
Família Baptista; José ao centro da imagem abraçando seus filhos (Foto: Arquivo pessoal)
Zé é casado com Neyr Assad Ferreira, 69 anos, e tem quatro filhos adultos que já trabalharam com ele na padaria. Atualmente, quem segura à barra com o padeiro é sua esposa e o filho caçula, André Luiz. “É tudo família. A gente reveza. Sou aposentado, porém não quero parar de trabalhar”, destacou.
Os anos se passaram e o padeiro “criou” raízes na região. “Aqui vou ficar até o fim da minha vida”, afirmou. Entre as lembranças marcantes que tem do bairro, recordou da vez que ouviu uma explosão intensa. “Tinha uma empresa que fazia rojões e pegou fogo. O local explodiu e danificou as residências próximas. Isso foi há 20 anos, foi um estrondo”.
Já seu momento de lazer mais tradicional é curtir a família aos sábados à noite, na Feira da Jacy. “Isso acontece há 20 anos. A gente vai lá comer espetinho, sobá. Tem de tudo lá. Às vezes, o pessoal organiza eventos na praça também”.
Saí, mas voltei – Difícil não se encantar com o sorrisão aberto da dona Clotildes Elias Tavares. Mais conhecida pela vizinhança por Clô, ela levanta o astral de qualquer um. Aos 68 anos, ela é natural de São Paulo, mas veio para Campo Grande com o ex-marido. Ele era sul-mato-grossense e queria ficar perto da família.
“Quando chegamos, ele comprou uma casa aqui na Jacy. Na época, achei tudo feio, muita poeira, mas agora melhorou bastante. Me acostumei tanto, que meu filho tinha comprado uma casa chique no Tiradentes para eu morar, mas não deu certo. Fiquei apenas um mês e voltei, não consegui me adaptar”, contou.
Clotildes Elias Tavares é sorridente e conhecida por Clô (Foto: Kisie Ainoã)
Já são 34 anos no bairro e ela afirmou conhecer quase todos os moradores. Pra ela, o clima é amigável e familiar. “Me sinto à vontade aqui. Moramos eu e minha mãe, que hoje está com 93 anos. Não deixo mais esse lugar por nada, só na hora que for pro andar de cima”, brincou.
Clô trabalhava como funcionária pública, até que se aposentou. Agora, sua distração é fazer as comprinhas do dia a dia e conversar com os vizinhos e amigos de longa data. “São minha família. Sempre vou comprar minhas mercadorias no mercado do japonês e de manhã bem cedo passo no seu Zé da padaria. A vida inteira comprei nesses lugares”.
Ela é mãe de quatro filhos que cresceram brincando nas ruas do bairro. Na época, parecia tudo mais fácil, tranquilo e sem maldade. Clô criou as crianças sozinha, na garra. “Me separei do marido e não quis mais casar. Estava com os filhos pequenos, fiquei com medo de expô-los”, relatou. “Depois de adultos, se espalharam pela cidade, mas eu permaneço”, destacou.
Saudade – Izelda Pelozo de Oliveira mora no bairro o mesmo tanto que Clô. Fazem compras nos mesmo mercado. Está com 60 anos, trabalhou como pedagoga no primeiro colégio do local, Escola Estadual Dona Consuelo Muller. Cumpriu um papel importante na região, alfabetizando as crianças da época.
Conseguiu realizar o sonho da casa própria e, ao lado do agora falecido marido, Gilberto de Oliveira, se mudou para a Jacy. “Decidimos comprar um terreno para construir. Tivemos filhos e os criamos aqui, atualmente, todos casados e moram em outros bairros”.
Izelda ao lado dos filhos ainda pequenos e ao fundo o já falecido marido, Gilberto de Oliveira (Foto: Arquivo pessoal)
Foram momentos felizes, e ela se recordou de alguns. “Meus filhos tiveram liberdade para brincar nas ruas, tinha muita criança aqui. A rua vivia cheia, não tinha tanta preocupação como hoje. Agora isso é mais complicado por conta da segurança, tanto é que as casas precisam ter portões altos”.
Quase impossível não se acostumar num local após 34 anos de moradia. É dessa mesma forma que funciona com Izelda, que fincou as raízes na Vila Jacy e hoje não abandona por nada. “É pequeno, mas aconchegante e de fácil acesso. Tem tudo aqui. Meu caminho diário é o mercado do japonês e a padaria. Fico por lá, converso com algum conhecido. É bem familiar, de amigos”.
“Aqui são muitos sentimentos. Vivi com meus filhos e meu marido, que faleceu há seis anos. Hoje, o que tenho são meus vizinhos. Eles sabem da minha rotina e sinto que posso confiar, principalmente. Quando saio peço para olharem minha casa, também os ajudo se precisarem”, falou.
Para ela, a região evoluiu muito em vista o que era antes. “Construíram o Shopping Norte Sul Plaza. A Jacy é pequena, fica do lado da Vila Taquarussu”, disse. “O que movimentava essa região era o laticínio, muitos moradores trabalhavam lá”, lembrou.
História – Antes de virar bairro, a Jacy era uma propriedade rural particular da família Barcelos, que era pecuarista. O local contava com um pomar e um aeroporto denominado “Aero Delta”, que servia de base para pequenas aeronaves dos fazendeiros. O loteamento do local começou em 1968, contudo, foi na década de 70 que o desenvolvimento da região acelerou. Na época, construíram o primeiro laticínio, que decretou falência e fechou há mais de 20 anos.
Em seguida chegaram os postes de luz. Em 1991 foi construída a escola Dona Maria Consuelo Muller. Anos depois chegou o asfalto na região, momento em que os moradores sentiram a mudança na calmaria da vila, para a agitação dos criminosos. Perto região estão os bairros Nha-nhá e Marcos Roberto, famosos pelo alto índices de violência e pelo tráfico de drogas.
Outro fato marcante, foi a explosão que sacudiu o bairro Jacy em outubro de 1990. Um depósito clandestino, Caderfogos, que conforme divulgado à época, escondia uma tonelada de pólvora, utilizada para fabricação de morteiros e fogos de artifícios.
A explosão não deixou feridos. A única vítima fatal foi um cachorro, mas a lembrança mais marcante é a de um Fusca vermelho que atravessou dois muros e foi parar dentro de uma igreja. O fato deixou sinais de destruição, na época.
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