Cultura

Meu Nome É Alzira E: cantora, compositora e instrumentista radicada em São Paulo

Circuito MS

11:56 01/05/2021

Desde os anos 1980 ganha disco de Zélia Duncan e documentário de Marina Thomé dedicados à sua obra

A letra de “When I’m Sixty Four” (Quando Eu Estiver com 64), aquele jazzinho macio dos Beatles cantado por Paul McCartney, fala de um personagem carente, que morre de medo de ser abandonado quando chegar na casa dos sessenta.

A banda fez a cabeça de todo o planeta, inclusive da sétima filha de Alba e de Francisco Espíndola.

Mas hoje, perto de completar as 64 primaveras temidas na canção, Alzira E, nascida em Campo Grande em 8 de setembro de 1957, passa longe da obscuridade com que parece ter se acostumado, talvez até por opção, durante muito tempo.

Em dezembro, a artista lançou o belo clipe de “Terra” – com direção de Marina Thomé, letra sua a partir do poema de Eunice Arruda e arranjo coletivo da banda Corte (Marcelo Dwrecki, Nandinho Thomaz, Cuca Ferreira e Daniel Gralha).

Em fevereiro, ganhou um disco-tributo assinado por ninguém menos que Zélia Duncan. Em março, acompanhou a estreia internacional do potente documentário de Marina Thomé sobre sua vida e sua obra.

Considerada uma das mais importantes autoras musicais do País, acumulando uma obra de mais de 170 canções gravadas, 14 álbuns lançados, centenas de shows por todo o Brasil e em países como Alemanha, Áustria, Suíça, França e Portugal, Alzira radicou-se em São Paulo em 1985, ainda carregando, na íntegra, o sobrenome familiar.

Desde então, foi conduzindo a experimentação do seu folk pantaneiro setentista, materializado ao lado dos irmãos nos grupos Luz Azul e Lírio Selvagem, em direção à vanguarda paulistana que terminou por ajudar a construir.

Hora de falar de figuras emblemáticas da cena independente da pauliceia com quem Alzira passou a fazer par, como Itamar Assumpção (“Que Triste Dia”), falecido em 2003, Arrigo Barnabé (“Vejo a Vida”), Alice Ruiz (“Sei dos Caminhos”) e Lucina (“Maria Pode Crer”).

As parcerias foram se multiplicando e, sem nunca abandonar o veio familiar ou de amigos como Almir Sater e Paulo Simões (“Terra Boa”), passaram a envolver, enquanto intérprete, compositora ou ambos, desde o irmão caçula Jerry Espíndola até Ney Matogrosso, Arnaldo Antunes e os próprios filhos, passando pelo poeta arrudA (com A maiúsculo no final mesmo), o baiano Tiganá Santana e Zélia Duncan.

A cantora que estourou nos anos 1990, com “Catedral” e outras canções, lançou recentemente “A Minha Voz Fica”, seu 13º álbum de estúdio.

No disco, Zélia abre seu conhecido e bem articulado estilo confessional com expressão notável para uma dúzia de temas criados por Alzira e mais alguns parceiros aqui citados.

A grande revelação é o violão do jovem gaúcho Pedro Franco, que confere ao álbum muito de sua originalidade e se espraia no bandolim, no contrabaixo e em outros instrumentos.

Enquanto isso, desde março, com a participação no Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente, a diretora Marina Thomé ensaia a carreira internacional de “Aquilo Que Eu Nunca Perdi”.

Documentário de força e de beleza que, se contar com as adequadas condições de circulação, tem tudo para aproximar ainda mais a trajetória de Alzira das novas gerações e ao mesmo tempo emocionar a velha-guarda.

Com sensibilidade e consistência no registro mais factual das andanças, das dores e das alegrias da artista, Marina põe em marcha, com ânimo e entrega, sua viagem pessoal em torno de uma biografia, de fato, impressionante, percorrendo em voos poéticos bem urdidos uma história de luta, de afirmação e, sim, de muito talento.

O tom geral da narrativa é de sobriedade, ainda que haja alguma celebração latente. Tudo na justa medida do que parece ser a caminhada e o temperamento da musa que inspirou a narrativa. E que teria encurtado o sobrenome, em 2007, após uma consulta aos orixás.

Duas mulheres versando sobre uma terceira, com trabalhos de fôlego que trazem a primeira pessoa no título. Com vocês, Alzira E. Sem ponto.

Correio do Estado: Um documentário de carreira internacional e um disco da Zélia Duncan cantando as tuas composições. O que pensa disso?

Alzira E: Tenho muita gratidão pelo trabalho maravilhoso que essas duas mulheres fortes fizeram.

Me sinto lisonjeada, reconhecida por tantos anos de carreira e de dedicação à composição e à música. Espero que isso aconteça muito mais vezes. Mulheres homenageando mulheres, lendo mulheres, cantando mulheres.

Faz falta que esse seja só um começo desse reconhecimento das mulheres.

Alguma cena ou música especialmente marcante nesses tributos?

O documentário inteiro foi e é muito marcante. Vou ter de assistir mais umas 10 vezes para te dizer. E a mesma coisa lhe digo sobre o disco de Zélia Duncan. Pode ser mais marcante a música em parceria com ela [“Fica”].

Fizemos no começo de 2020 pelo zap [WhatsApp] e ficou surpreendente. Me surpreendi a cada escolha na elaboração do repertório e o talento com que ela desenvolveu essas interpretações, se entregando e sendo tão sincera com a sua própria voz.

Ela pegou músicas de quase todos os meus parceiros. Muito marcante também fazer em meio a um ano de pandemia. Uma sonoridade quase acústica com os arranjos belíssimos do Pedro Franco no violão de sete cordas. Um disco maravilhoso que não paro de ouvir.

No cinema, antes do filme da Marina, lembro apenas de um curta-metragem de animação, “A Traça Teca” (2003), com a tua presença no elenco de vozes.

Não foi somente esse. Já fiz alguns. Uma coisinha aqui, outra ali. Uns documentários da Cristina Fonseca, por exemplo, um sobre Oswald de Andrade. Também tem uma música que eu e a Tetê cantamos em um documentário sobre Cora Coralina, um poema que musiquei, “O Rio Vermelho”.

E uma do nosso álbum “Anahí” [1998], “Serra da Boa Esperança” [Lamartine Babo], que encerra um filme brasileiro bem do começo do milênio. Esqueci o nome. Não tenho muita experiência com cinema não.

Não me parece tão comum mulheres contrabaixistas na música brasileira.

Primeiro, agradecer por me considerar baixista. Mas não me considero não. Sempre compus em linha de baixo no violão. Ganhei esse baixo maravilhoso [um Gibson SG 69] e há cinco anos venho tocando mais.

É um instrumento de performance. Cantar com ele é um ato performático. Posso até ter essa cabeça de baixista para compor com um baixo e tudo. Mas são muitos anos de violão, né? É difícil você mudar um instrumento assim.

Caymmi, Jobim, Caetano mais recentemente com os filhos. Essa coisa de família de artistas ajuda ou atrapalha na condução da carreira? Como é para ti?

Sou a sétima filha, então já nasci no berço musical, convivendo com esses grandes artistas que são Humberto Espíndola, Geraldo Espíndola, Tetê Espíndola.

A Tetê foi a minha primeira parceira [com a canção “Aa Vaa Camaa”, que na cifrada língua do “A” das manas significa “Eu Vou Comer”]. Eu tinha uns oito anos e a gente nem tocava instrumento ainda.

Depois veio Geraldo, Celio, Celito, tudo tocando. Isso foi uma ajuda imensa, porque com 11 anos eu já sabia tocar violão só de ver meus irmãos tocando e conviver com aquela música tão latente e nativa e naturalmente nascendo ali no meio daquela juventude toda.

Conduzir sua carreira também depende disso, respeitar desde os princípios a música do outro, a sua própria música. Saber se conduzir na sua própria personalidade, no seu talento nato, saber proteger ele.

Isso eu aprendi muito com os meus irmãos. Depois veio o Jerry, nosso querido caçula, um grande parceiro meu. Ele já veio com tudo. Foi fundamental nascer nessa família e receber tudo isso dos meus irmãos. Apoio, inspiração e musicalidade.

Como vê o legado musical da tua geração? Algum nome que considere uma espécie de tesouro escondido?

Incrível essa geração guerreira, que saiu de Mato Grosso do Sul para ter uma carreira tão especial. Ney Matogrosso, um artista completo. A Tetê, essa voz rara lindíssima, com muitos discos gravados e circulação pela França.

O Almir Sater com o Paulo Simões. Geraldo Espíndola, um dos nossos compositores mais gravados. Temos que nos orgulhar muito.

Da nova geração, tenho que falar sobre o Jerry. Ele é um fomentador de novos talentos. Begèt de Lucena, Ju Souc, Marina Peralta. Gente guerreira que está aí também para trazer legado.

Algum nome que considere uma espécie de tesouro escondido?

Talvez me venha à cabeça o Geraldo Roca [que, com Paulo Simões, compôs o clássico “Trem do Pantanal”].

Por que decidiu sintetizar o nome para Alzira E?

Naquele disco que o Itamar produziu, o AMME [pronuncia-se A-EME-EME-E], em 1992, já existia essa vontade de mudar o meu nome artístico e a intenção foi que ele virasse as minhas iniciais, Alzira Maria Miranda Espíndola.

Mas só depois, percorrendo a minha estrada, desenvolvendo a carreira, fui sintetizando. Foi ficando claro que o meu nome deveria ser Alzira E, e o E sem ponto, porque não é uma abreviação de Espíndola.

Faz todo o sentido, com a minha carreira de muitos parceiros, esse Alzira E que vem com algo mais. Alzira e composição, Alzira e sonoridade, Alzira e uma porção de coisas. Individualidade e identidade com o que realmente eu sou.

Como vai a vida de pandemia? Cabeça, rotina, projetos e tudo mais.

Vem sendo muito difícil, triste, pesado. Não ter mais palco, público, shows, encontros com músicos queridos. É difícil de segurar. Tem que pôr a cabeça em projetos, manter a rotina dentro de casa e ganhar força.

A música tem o dom de nos manter alegres, vivos. De repente, a gente mudou a nossa rotina para aprender, com essas ferramentas da internet, a estar mais perto do público.

Graças a Deus, consegui uns quatro shows que deu para exercer a performance de palco [entre eles a live da Natura, a Virada Cultural e uma apresentação ao lado da filha Iara Rennó no Sesc Pompeia em outubro, todos sem público e com transmissão ao vivo].

Vamos nos agarrar à arte e tentar sobreviver pela beleza, porque a tristeza está muito grande.

O projeto mais recente que acabei de realizar foi o [show] “Corte” [uma retomada do espetáculo de 2017] pela Lei Aldir Blanc, seguindo todos os protocolos, sem público, todos os músicos com teste, depois de um ano sem tocar ao vivo frente a frente.

Foi filmado e documentado também pela Marina Thomé [disponível no YouTube e no IGTV]. Os minidocs que a Marina preparou estão muito bonitos.

Uma cantora mãe de cantoras. O que se ensina? E o que se aprende?

Ser uma artista mulher mãe de família é uma experiência única. Ganho muito de ter os meus filhos também envolvidos com a música, porque eu vejo a continuidade, a criação individual que cada um deles tem, a Iara Rennó, a Luz Marina e o Joe Espíndola.

Estamos isolados em família e tem acontecido momentos incríveis, composições novas. Minhas com a Iara, da Iara com o Joe, da Luz Marina com a Iara.

É um momento em que a família, por ter a música, consegue estar mais unida e produtiva. Ser mãe nunca me atrapalhou em nada, é um aprendizado eterno. Sou completamente apaixonada e gratificada por esse estado de ser mãe.

Via Correio do Estado

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