Na maior escola da cidade, o aluno singular aprendeu a ler aos 59 anos
7:50 24/08/2019
[Via Campo Grande News]
Atendimento das 7h às 22h, público diário de 2.500 pessoas, 230 funcionários, fornecimento de 50 quilos de arroz por dia e 1.200 ovos numa única manhã. Os números de impressionar são da maior escola municipal de Campo Grande: Padre Tomaz Ghirardelli. Desta profusão de estatística, se projeta uma placa singular. Nas mãos da coordenadora Mauricéia Azevedo Paes, a pequena homenagem retrata o que não se pode quantificar: o carinho de quem aprendeu a ler e escrever aos 59 anos.
O presente foi dado ao aluno por colegas do trabalho, no reconhecimento pelo esforço de quem madruga, cruza a cidade para ir ao emprego e ainda resolveu estudar. Mas Raimundo Bernaldo dos Santos decidiu que a placa deveria ficar com a mestra.
“Ele está aqui desde o ano passado. Veio porque queria aprender a ler e a escrever. O que não conseguiu quando era mais novo, devido ter começado trabalhar muito cedo. Ele está no inicial dois [que corresponde ao quarto e quinto ano]. Esse ano, também trouxe a esposa”, conta a coordenadora.
“Ela merece”, afima Raimundo sobre a homenagem. O estudante mora na região do bairro Dom Antônio Barbosa, madruga para trabalhar nas Moreninhas e só volta para a casa depois de bater ponto na escola. Todo o deslocamento é feito de ônibus. Nascido em Alagoas, ele estudou por pouco tempo na adolescência. Agora, além das contas, para a quais tinha aptidão natural, domina as letras.
Raimundo é aluno do EJA (Educação de Jovens e Adultos), que funciona no período noturno, das 18h às 22h. Nesta modalidade, são 230 alunos, com idade a partir de 15 anos. A maioria passa o dia no trabalho duro, como servente de pedreiro, por isso, a escola se preocupa em oferecer o lanche no começo da aula. A lógica é que só aprende quem está bem alimentado.
“Os professores tentam fazer atividades diferenciadas, não é só copiar. Como eles trabalham muito, a gente faz algo diferente, desde o lanche o tratamento é VIP”, diz Mauricéia, que veio de Rondônia para estudar em Campo Grande e decidiu exercer aqui a sua vocação de ensinar. Para quem quer desistir, ela lembra que o Ensino Médio é a exigência mínima para a maior parte das vagas de emprego.
“Sei a história da maioria. E eles conhecem as regras. Quando erram, até somem. Mas depois aparecem pedindo desculpas”, conta Mauricéia.
Sempre lembrado – Localizada no Parque do Lageado, a escola tem 21 anos e também recebe alunos dos bairros Dom Antônio Barbosa e Parque do Sol. A região tem as suas carências financeiras e de infraestrutura, realidade abarcada pelo termo vulnerabilidade social. No imaginário da cidade, o Dom Antônio é o bairro sempre lembrado pelo lixão, que há alguns anos foi substituído pelo aterro sanitário.
No passado, a disputa das gangues do Dom Antônio Barbosa e Parque do Sol, bairros separados pela rua Evelina Selingard, refletiu na escola. Há três anos, o colégio se abre para festas, como eventos juninos, sem registro de violência.
Já as dificuldades financeiras repercutem principalmente na alimentação. Às segundas e sextas-feiras é preciso pôr mais água no feijão. No fim de semana, muitos alunos terão o cardápio restrito ao sopão distribuídos por voluntários de igreja e centro espírita. Na escola, o lanche lembra o quebra torto (refeição servida logo cedo para quem vai trabalhar) e também é servido logo que a aula começa.
“O lanche é servido logo que eles chegam. O bairro tem vulnerabilidade social e a maioria das crianças espera pelo lanche, que é uma refeição com arroz, carne, feijão, frutas. A situação de alguns é muito difícil ainda”, afirma a diretora Clarice Cassol Miranda, que há três anos está no comando da maior escola da Reme (Rede Municipal de Ensino).
Com as festas, conseguiu instalar câmeras e acompanha a rotina dos estudantes por um telão na diretoria. A arrecadação com eventos também bancou os R$ 8 mil para cobertura metálica lateral de uma das quadras.
O colégio tem 36 salas de aulas, sala de informática, duas quadras, laboratório de Matemática, laboratório de Ciências, sala de multimeios, ateliê, banda, balé, futsal e quadra de beach tennis. A equipe de funcionários conta com 180 professores e 50 administrativos.
“Devido à grande quantidade de alunos, a gente faz o possível e o impossível para eles serem bem atendidos. A escolaprocura levar os alunos ao cinema e passeios. Muitos não saem do bairro”, afirma Clarice.
Merenda em ritmo industrial – Conhecida como “prô” (diminutivo de professora) entre os pequenos e de tia entre os mais velhos, a merendeira Lidiane Camillo Guimarães Ferreira, 38 anos, trabalha na escola há cinco anos. A rotina para alimentar tanta gente começa cedo.
Às 6h é preciso iniciar os preparos para servir a merenda. Dependendo do cardápio do dia, podem ser preparados 20 quilos de arroz numa única manhã, lavadas milhares de folhas de alface e fatiados quilos de cenoura.
A experiência ensinou que a melhor forma de preparar ovos para um batalhão é fazer o alimento mexido. O ensinamento veio depois da corrida contra o tempo para descascar 1.200 ovos cozidos. Pelas mãos das merendeiras, alunos aprendem a comer saladas e a conhecer frutas, nem sempre presentes na refeição oferecida em casa.
“Nunca na minha vida achei que ia alimentar tanta gente. Quando fiz o concurso, achava que as escolas eram pequenas. Pensei meu Deus. Mas vim para cá e aqui estou”, diz Lidiane, que encara o preparo de dez quilos de arroz numa única panela.
Saudade antecipada – Na maior escola da rede municipal de Campo Grande, não espere encontrar corredores vazios. O ir e vir de professores, alunos e administrativos é constante. O nome Tomaz Ghirardelli homenageia o padre nascido na Itália, mas que passou a maior parte da vida em Campo Grande.
Na manhã da terça-feira (dia 20), a fila de meninos e meninas, guiada pelo professor, ruma para a quadra. De repente, uma parada na coordenação vira choro e protesto infantis. Dois ficam pelo caminho. O motivo, dito com toda a sinceridade dos seis anos, foi ter dado susto e tentado bater em meninas. O choro logo vira história animada sobre a brincadeira preferida: soltar pipas.
No maior colégio, os alunos podem cursar da pré-escola ao nono ano. O caminho foi percorrido por Anna Kelly Vitório Pereira Braga, 15 anos. Em 2019, ela está de despedida. O futuro inclui os planos de concluir o Ensino Médio e ser policial militar. Vice-líder de sala, Anna aprendeu a intermediar os interesses dos colegas e da escola
“Eu preferia ficar aqui até o terceiro ano. Se tivesse, eu ficava. Vou sentir muitas saudades”.
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