Violência contra mulher indígena equivale a menos de 1% das denúncias
11:35 22/06/2019
[Via Campo Grande News]
Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas) as mulheres são as principais vítimas da violência cometida nas comunidades indígenas em todo o mundo. É uma realidade que, ao menos em Mato Grosso do Sul, não alcança os números. Subnotificada, a violência doméstica contra a mulher indígena é problema invisível, ainda pouco discutido e encontra “abrigo” escasso nas instituições.
Dados da CMB (Casa da Mulher Brasileira), a primeira criada no Brasil, mostram que os atendimentos às mulheres indígenas representam menos de 1% do total de atendimentos. Em meio às 23.157 mulheres atendidas na Casa, entre 15 de fevereiro de 2015 e 21 de junho de 2019, apenas 144 eram indígenas. Elas representam menos de 2% do total de denúncias de mulheres brancas, por exemplo, 8.727.
Para as indígenas e representantes das instituições os números indicam um cenário complexo que faz com que a mulher indígena não chegue até as portas das delegacias. Envolve as barreiras culturais, como a língua, por exemplo, mas também o descaso dos espaços públicos, que precisam se “indigenizar” para alcançar as mulheres.
A escalada da violência em aldeias do interior do estado, em especial na região sul, motivou uma coletiva de imprensa do MPF-MS (Ministério Público Federal). Procurador da República em Dourados, a 233 km de Campo Grande, Marco Antonio Delfino de Almeida declarou que a população das aldeias não tem acesso à segurança pública.
“Nós entendemos que o diálogo que nós tivemos esse tempo todo com a secretaria de segurança pública não adiantou, é só pegar os índices. Os índices de violência em Mato Grosso do Sul são índices que estão caindo, mas porque os índices de violência não caem nas comunidades indígenas? Como o Estado consegue reduzir índices de violência fora das comunidades e não conseguem dentro das reservas? As comunidades querem os mesmos direitos”, comentou.
Falta de estrutura – Edith Martins Guarani, liderança indígena da Aldeia Jaguapiru em Dourados, viajou até Campo Grande para denunciar a violência sofrida pelas mulheres. Quando tomam a iniciativa de denunciar, relatou a indígena Guarani e Kaiowá, as mulheres não encontram estrutura. “Só que a gente não tem acesso para levar as mulheres, porque não temos condução. O que nós precisamos é de uma condução para socorrer as mulheres”, disse.
A Guarani e Kaiowá Alda Silva relata que há dificuldade das mulheres serem recebidas nas delegacias. “A realidade mesmo é que, como disseram, sim é o padrasto, mas não é só o padrasto, é o primo, o tio, o irmão. Hoje em dia não pode confiar. A gente leva lá para fora e talvez a gente chega lá e não quer nem receber a gente. A gente leva lá, vai lá, leva com sufoco, chega com a criança, chega com a mulher estuprada. E o que vem depois? Ele mesmo esperando uma ameaça para aquela mulher. A gente vai lá e não recebe lá. E às vezes a desculpa é que não tem ninguém. É muito difícil para gente”, comentou.
Segundo a Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública) 73 boletins de ocorrência por agressão em aldeias de todo o estado foram registrados entre o dia 1 de janeiro e o dia 18 de junho. Dos 15 feminicídios registrados pela Secretaria, afirma, 1 foi registrado tendo como vítima uma mulher indígena.
Os números da CMB diferem dos repassados pela Sejusp. Segundo o departamento de tecnologia de informação da Casa, este ano foram 3 casos enquadrados como feminicídio. Um deles, apesar de indicar contexto de violência de gênero, é tratado como homicídio qualificado por motivo fútil. É a história de Eronilda Gabriel Mendonça, de 34 anos, alvejada por 4 tiros pelo companheiro. Os dados da CMB indicam, em 2018, 1 caso de feminicídio, 3 em 2017, 6 em 2016 e 3 em 2015.
A polícia, conta a Guarani e Kaiowá Mirna Juliana Martins, não chega na aldeia Jaguapiru, em Dourados. E se a polícia não chega, também é difícil alcança-la: entre ida e volta, da aldeia até a Deam (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher), são, aproximadamente, 50 km.
“Atuação policial não tem lá, é muito difícil. As mulheres mesmo quando são violentadas elas não tem condição de reclamar isso, é muito longe. A Deam é muito longe e depois para fazer o corpo de delito é muito longe também. Sem condições nenhumas, os capitães trabalham com recurso próprio e a polícia fala que não é táxi”, contou.
Confinados – A morosidade na demarcação das terras indígenas e o histórico processo de reservamento – intensificado ao longo do século XX e responsável pela criação das aldeias em Mato Grosso do Sul -, é uma das realidades por trás da violência nas aldeias. O aumento de conflitos internos, a dependência química e a falta de persectiva culminam na violência, causada pelo confinamento. É o que afirma a Guarani e Kaiowá Jaqueline Aranduhá.
“A intenção de criar esses espaços e obrigar os indígenas a viver em confinamento, é o resultado da política anti indígena que vemos predominar fortemente por décadas, onde acontecem ciclos e mais ciclos de violências até os dias atuais. O confinamento em um espaço de 3.600 hectares, e o aumento da população indígena no espaço da Reserva gerou muitas consequências”, afirma.
Além disso, destaca, a violência encontra entre os indígenas uma cultura patriarcal enraizada pela chegada do cristianismo e da ideia de que a mulher é propriedade do homem. “Quando os jesuítas colocaram o homem Indígena como escravos/massa de manobra e as mulheres indígenas como um meio de reprodução humana, iniciou-se o patriarcado, o machismo, as mulheres indígenas submissas ao homem. Hoje não tem um meio legal que protege de fato as mulheres indígenas, a questão econômica ainda deixa a mulher Indígena como submissas ao homem. Ter a mulher como “minha esposa” “minha namorada” é uma relação de propriedade privada, o que muitas das vezes leva ao feminicidio”.
Para ela, o principal instrumento de proteção às mulheres, a Lei Maria da Penha, de 2006, “não funciona” para as mulheres indígenas. “A lei Maria da Penha não protege a mulher Indígena, não se aplica a sua realidade, a medida protetiva não funciona dentro dos territórios indígenas. Mas ainda é pouca a discussão e o interesse, sobre elaborar com as mulheres indígenas, formas legais como leis que as protegem. Dentro das Reservas Indígenas, o maior líder é o “capitão” só o nome já diz, mais uma consequência deixado pelos não Indígenas, um machismo que também produz a Violência”.
“Enquanto não se discute, não se garante o direito das populações indígenas, a Violência de uma forma geral continua aumentando nos territórios indígenas. E as mulheres estão expostas, estão morrendo. A maioria delas não consegue denunciar, pois não tem uma continuidade das ações para apurar a denuncia. A mulher tem que voltar para casa, para aldeia, as ameaças são constantes e são como mordaças nas mulheres indígenas. Não existe um lugar para acolher Mulheres Indígenas vítimas de violência. Não existe uma lei que as ampare. Não existe continuidade nas ações de investigação”, reclama.
Jaqueline se queixa de que os pedidos para que haja tradutoras nas delegacias são antigos, e nada mudou. “A língua materna dificulta na hora da denuncia. Mas quantas vezes pedimos que houvessem interpretes Indígenas nas delegacias”.
“As notícias que rondam é que os motivos são as bebidas alcoólicas e drogas, uma forma de invisibilizar a violência como ocorre contra as mulheres indígenas. Pois ambas tanto a droga quanto a bebida alcoólica também são consequências do confinamento nas Reservas Indígenas”, complementa.
Vozes: uma tentativa de alcance – Um projeto criado em 2016 tenta, lentamente, alcançar as mulheres indígenas vítimas de violência. Ao menos em Campo Grande. Criado pela titular da 72ª Promotoria de Justiça, na CMB, Luciana Rabelo, o projeto “Vozes: O Protagonismo das Mulheres Indígenas” tenta fazer o caminho oposto do tradicional: levar o atendimento até as mulheres.
“Partiu [ideia do projeto] de uma constatação de que as mulheres indígenas não vinham até a CMB e dificilmente apareciam na minha promotoria de justiça. Apesar da gente ter um grande atendimento de mulheres vítimas de violência, era difícil aparecer uma mulher indígena. Teve um dia que eu atendi uma mulher indígena aqui e ela tinha vindo para uma palestra, um movimento de mulheres, ela estava em Campo Grande, mas era de Dourados. Ela foi trazida por outras mulheres. Sofria violência doméstica do marido e foi o meio, quando veio para esse movimento que teve aqui, de falar que sofria violência doméstica. As mulheres trouxeram ela até a promotoria, para ser atendida, mulheres não indígenas”, conta a promotora.
O projeto leva orientação sobre os diferentes tipos de violência doméstica, palestras sobre a lei maria da penha e até oficinas. Ao visitar, até agora, três das onze aldeias urbanas de Campo Grande, a promotora percebeu que se não fosse até onde vivem, elas não iriam até a Casa da Mulher. Além disso, conta, depois do projeto, as mulheres passaram a denunciar mais.
“Eu verifiquei que as mulheres indígenas não tinham conhecimento sobre a CMB, não sabiam o que é, não tinham essa informação, essa orientação. Por falta de conhecimento não tinham confiança no serviço oferecido. Então passei a ir até o encontro das mulheres indígenas. Elas tinham que conhecer o serviço da promotoria, conhecer quais eram os serviços oferecidos, saber os serviços oferecidos na casa da mulher, e também me conhecer. Eu não podia ficar aqui na minha promotoria esperando elas virem, porque nunca iriam vir. É diferente das mulheres brancas que têm um acesso maior à informação”, comenta a promotora.
As barreiras são muitas, conta. Não falar português, não saber ler e até o medo de não ser aceita na comunidade depois de denunciar o companheiro. O “Vozes” começou com as vendedoras do Mercado Municipal, mulheres que realizam uma diáspora semanal, vindas das aldeias do interior do estado, para venderem produtos no mercadão.
“Então eu fui ao mercadão conhecer, saber quem elas eram, como era a vida delas e passar essa informação. Levar material de apoio, as cartilhas. São rodas de conversa, de forma bem simples, de conhecer a vida delas e ouvir as histórias delas, também saber o que elas precisam. Eu passo as orientações da minha promotoria, e eventuais requerimentos que sejam de outras promotorias de Justiça são encaminhados”, conta.
Como eu me vejo – A aldeia urbana do bairro Santa Mônica é um dos locais que já receberam a visita da equipe da promotoria. No local, as mulheres foram capacitadas e uma das oficinas as ensinou como confeccionar bonecas de pano. Um símbolo, na maioria das vezes ausente na infância, que representa identidade, autoestima e até geração de renda.
“Além da confecção da boneca de pano, a oficina era para trabalhar a autoestima dessas mulheres. As mulheres são similares com a identidade, como cada uma se viu, cada indígena que participou dessa oficina se fez naquela boneca, trabalhou a autoestima dela, como ela se vê como pessoa, e a psicóloga no dia que ia fazendo as oficinas, ia falando sobre temas da psicologia, autoestima, ansiedade, depressão, sobre violência doméstica, os tipos de violência doméstica para elas aprenderem a reconhecer”, relata a promotora.
O projeto, além de empoderar para que as mulheres denunciem, foi a ponte responsável para que muitas mulheres conseguissem atendimento na rede pública de saúde. O preconceito, o racismo, ou seja, a forma como eram atendidas nos postos de saúde, terminou por deixa-las sem exames de saúde.
É o que contou a Terena Loyrce Francisco Massi, 49, que veio da aldeia Bananal, em Aquidauana, a 135 km de Campo Grande, e hoje vive na aldeia urbana Santa Mônica. “Naquela época era difícil da gente agendar e chegava ali no postinho não tinha vaga e se tivesse era daqui a 6 meses”, comentou.
Loyrce acredita que as mulheres indígenas sejam “mais tímidas” que as mulheres não indígenas, um obstáculo para denunciar. “É bem difícil. A mulher indígena ela é bem assim retraída e a gente tem medo de expor, vergonha…o marido bateu, temos vergonha de ligar e falar: ‘o marido me bateu’ ou me xingou. Eu nunca apanhei do meu marido, mas eu tive amigas que apanhavam, elas tinham vergonha de se expor e a comunidade ficar sabendo. Além disso, quando o esposo tem uso de bebida alcoólica, xinga, é a mesma coisa”, disse.
Vice-cacique da aldeia urbana Rosana Poquiviqui, 53, acredita que a chegada de mulheres nos espaços de liderança auxilia para que mais mulheres denunciem.
“As mulheres agora que estão começando a exercer liderança e isso é muito importante porque a gente como líder tem como orientar as mulheres. Falando assim: ‘olha, não é assim, não abaixa a cabeça, fala, grita, pede socorro’. Eu estava conversando com o líder dos caciques aqui de Campo Grande e ele falou que realmente precisa de uma mulher para ajudar, porque eles como homens não tem como chegar nas mulheres. E não tem como, porque elas se retraem, elas ficam ali guardadas. E o medo, do pai, do irmão, dos homens, então aos poucos a gente vai chegando, conversando, tentando transmitir isso”, diz.
O projeto transformou, também, o atendimento na CMB. A promotora relata que o sistema foi modificado para receber as indígenas.
“A pedido da promotoria, o conselho gestor da CMB fez várias alterações nos questionários e no sistema da Casa da mulher como um todo. Na entrada na Casa da mulher, por exemplo, foi incluído no questionário de atendimento a etnia, se é indígena e o tipo de etnia, que foi uma sugestão também dessas oficinas. Até para saber se tem conhecimento da língua, se precisa de um intérprete, se precisa de um auxílio a mais, para esse entendimento da lei Maria da Penha ou outro entendimento, se mora em uma aldeia ou se não mora em uma aldeia”, avalia a promotora.
O projeto é um dos finalistas do prêmio nacional do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Luciana, avalia, em síntese, que para proteger as mulheres o único caminho é, de fato, o inverso: as instituições devem alcançar as mulheres indígenas. Aplicar as leis que protejam as mulheres, comenta, só ocorre quando as mulheres são vistas com o prisma da diversidade.
“A gente precisa estar mais próximo, enxergar essas dificuldades, as particularidades. As mulheres rurais, as quilombolas, as indígenas”, disse.
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